sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

LUCIANO DE SAMÓSATA





Luciano de Samósata


LucianoLuciano de Samósata (gr. Λουκιανὸς Σαμοσατεύς) nasceu c. 125 em Samósata, na província romana da Síria, e morreu pouco depois de 181, talvez em Alexandria, Egito. De certo, pouca coisa se sabe a respeito de sua vida, mas o apogeu de sua atividade literária transcorreu entre 161 e 180, durante o reinado de Marco Aurélio.

De origem possivelmente semita, Luciano escreveu em grego e se tornou conhecido notadamente pelos diálogos satíricos. Satirizou e criticou acidamente os costumes e a sociedade da época e exerceu, a partir da Renascença significativa influência em escritores ocidentais do porte de Erasmo, Rabelais, Quevedo, Swift, Voltaire e Machado de Assis.

A ele foram atribuídas mais de 80 obras, conhecidas em conjunto por corpus lucianeum ("coleção luciânica"), dentre as quais pelo menos uma dezena é apócrifa. As mais conhecidas são Uma história verdadeira (ou Uma história verídica), O amigo da mentira, Diálogo dos mortos, Leilão de vidas, O burro Lúcio, Hermotimo e A passagem de Peregrino.

Em Uma história verdadeira, Luciano relata uma fantástica viagem à Lua, menciona a existência de vida extraterrestre e antecipa diversos outros temas popularizados durante o século XX pela ficção científica. Em A passagem de Peregrino legou-nos uma rara abordagem do Cristianismo segundo o ponto de vista de um não-cristão.






A ficção pela ficção

Livro do professor Jacyntho Brandão analisa obra de escritor grego, que, no século 2, abalou a noção de verdade na literatura

Maurício Guilherme Silva Júnior

o longo da História, a cultura grega influenciou o trabalho de artistas e estudiosos dos quatro cantos do planeta. Boa parte do pensamento ocidental foi construído sobre a rica fundação teórica desenvolvida pelos gregos. Àqueles que desejam conhecer ainda sobre as tradições da Grécia Antiga, os textos de um escritor nascido na Síria, nos idos do século 2, podem ser de grande valia. Pouco difundida no mundo, a literatura de Luciano de Samósata, que abandonou sua terra natal para viver entre os gregos, é o convite ideal para uma viagem inteligente e bem-humorada ao universo helênico.

O autor, que viveu numa época em que historiadores e filósofos eram muito comprometidos com a verdade, foi o primeiro a tratar o texto literário como mera ficção. Seus romances, diálogos, panfletos, sátiras, paródias e peças de teatro inspiraram autores como Erasmo de Roterdã, Thomas Morus, Rabellais, Voltaire, Montesquieu, Cervantes e Machado de Assis.

Instigado pelo conjunto da obra de Samósata, o professor Jacyntho Lins Brandão, do departamento de Letras Clássicas da Fale, escreveu, pela Editora UFMG, Poética do Hipocentauro - literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata. Desdobramento da tese de doutorado defendida pelo professor em 1992, junto à Universidade de São Paulo (USP), o livro é uma análise dos 80 textos deixados pelo autor clássico, até então visto pela crítica como um representante do período de decadência da Grécia. "Esta é uma visão equivocada. A obra de Luciano é do fim da Antigüidade, período de crise, e, por isso mesmo, fértil em mudanças nas instituições, nos valores e no imaginário social", explica Jacyntho Brandão.


Pós-moderno

O professor da Fale identifica em Luciano de Samósata características que o tornam bastante especial na história da literatura mundial. O autor é, por vezes, inovador. A mesma visão que o Ocidente possui de obras clássicas é recorrente em seu pensamento. Ao ler os trabalhos de historiadores, poetas e filósofos que o antecederam, Samósata, além de tomar a tradição como referência, passa a dialogar criticamente com o legado de tais artistas. Vem daí a mistura de gêneros que culmina com a criação do chamado diálogo cômico, que entrelaça filosofia e comédia. "Como professor, indico a meus alunos textos de Luciano de Samósata. Depois de lê-lo, muitos deles dizem que seu estilo é totalmente pós-moderno", conta Jacyntho Brandão.

Outra importante contribuição do pensador à literatura está em sua visão do fazer artístico. Ele é o primeiro autor da história a admitir a noção de ficção enquanto ficção. O autor inova ao confessar que em seus textos a mentira é algo corriqueiro, que supera os fatos do mundo. "A partir dele, a literatura se assume como tal. Ao confessar que mente, Luciano está também criticando autores que perseguem a verdade o tempo todo", diz o professor da Fale. Luciano de Samósata pode realmente ser considerado um autor enciclopédico, capaz de tecer comentários - argutos e diretos - sobre tudo e todos. Foi isso que permitiu ao professor da Fale analisar a literatura, a sociedade e o discurso ficcional a partir de sua obra. O ofício crítico é presença marcante na literatura de Samósata. Para ele, historiadores deixavam a verdade de lado em benefício dos interesses dos poderosos; filósofos sempre mentiam, pois seus atos não condiziam com suas palavras, e oradores apresentavam discursos distantes dos reais fatos políticos. "Para Samósata, só os poetas tinham o direito de criar com pura liberdade", afirma Jacyntho.

Diálogo entre Luciano de Samósata e Dionísio de Halicarnasso:

Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, UFMG
[Diógenes]  Antístenes e Crates, vamos aproveitar o tempo em que estamos livres e à toa (skholén)! Por que não saímos logo daqui e damos uma voltinha até a entrada, para que possamos ver (opsómenoi) que tipo de gente está descendo ao Hades (katióntas) e o que cada um faz (poieî) ao chegar?
[Antístenes]  Vamos, Diógenes, pois deve ser um espetáculo (théama) divertido e prazeroso: ver (horân) uns chorando, outros suplicando para soltá-los, e alguns ainda pondo dificuldades na descida e, mesmo empurrados por Hermes pelo pescoço, resistindo e dobrando o corpo para trás, num esforço inútil e desnecessário.
[Crates]  Eu, então, vou aproveitar também para contar (diegésomai) a vocês as cenas que vi (eîdon) pelo caminho (katà tèn hodón) enquanto descia (hopóte kateíein)1.
Crates, que é discípulo de Diógenes, que é discípulo de Antístenes, que é o fundador da Escola Cínica. Crates propõe narrar, fazer uma narrativa, uma diégesis daquilo que já passou e que ele registrou pela vista, antes mesmo de, no momento presente, ver (horân), com Antístenes, um espetáculo provavelmente agradável, antes de realizar a expectativa futura de visão (ópsesthai), anunciada e proposta por Diógenes. Crates tem a sua memória  assim como os outros dois , ou melhor, a lembrança de sua descida vem a partir da ação de narrar e em função das impressões visuais que ficaram inscritas como marcas, traços, cujo rastreamento
1 LUCIANO, Diógenes, Antístenes e Crates, 1 (Diálogo dos Mortos). As referências bibliográficas relativas a Luciano são: LUCIANO. Diálogos dos Mortos. Tradução e notas de Maria Celeste Consolin Dezotti. São Paulo: Hucitec,1996; Menipo ou Necromancia. In: LUCIANO. Obras (vol. II) trad. e notas por José Luís Navarro Gonzales. Madrid: Gredos, 1991; Obras (vol. III). Traducción y notas por Juan Zaragoza Botella. Madrid: Editorial Gredos, 1990; Uma História Verídica. Pref., trad. e notas de Custódio Magueijo. Lisboa: Inquérito, Edição nº 816 113/0076; LUCIAN, Lucian with an English Translation. Translation by A. M. Harmon. Cambridge/Massachusetts/London: Harvard University Press, 1992 (v. IV), 1990 (v. VI).
SCRIPTA CLASSICA ON-LINE. Literatura, Filosofia e História na Antigüidade.
Número 1. Tema: Contestações do Mito. Belo Horizonte: NEAM/UFMG, abril de 2003.
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perfaz a narração atualizada e, ao mesmo tempo, indica uma falta, a memória de algo, um sêma mnemônico, o sinal de uma perda.
Em Diálogo dos Mortos como um todo, há dois gêneros de lembranças: um eufórico e outro disfórico. Tudo o que tenta aprisionar a realidade e encerrá-la num determinado e determinante modo de viver, como a perspectiva de acumular riquezas, poder, saber ou de gozar egoisticamente de força e beleza, tudo isso destrói a morte. Os que se sentem assim aprisionados à vida sofrem de memória, isto é, os seus vínculos com o reino de cima, o espaço dos vivos, os fazem sofrer, e as lembranças, que lhe são correlatas, são sempre dolorosas (e aflitivas) e indicam, pela sensação de desvinculação, o signo de uma falta, a perda de tudo aquilo que parece fornecer a identidade daqueles enquanto vivos. Lembrar é perder, é estar morto em relação ao que narra algo já passado, é desvincular-se do gênero de vida ao qual se está acostumado. Lamentamos e choramos pela inevitabilidade de sermos o outro ou porque já não somos mais os mesmos.
Não é a mesma a posição dos cínicos. À memória com dor eles antepõem outra, cuja visão é agradável e prazerosa. Divertem-se com as próprias recordações, rindo e zombando do modo como aqueles, monologicamente apegados à vida, sofrem e se lamentam pelas lembranças do que já não possuem e do que já não são. Por que, então, ó Cínico, você não se acabrunha por ter morrido?
[Menipo]  Como poderia, eu que me apressei para a morte (epì tòn thánaton) sem que ningúem me tivesse convocado? Mas, enquanto falamos, vocês não estão ouvindo um clamor, como se fossem de pessoas gritando lá da terra?2
2 LUCIANO, Caronte; Hermes e Diversos Mortos, 12 (Diálogos dos Mortos).
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Menipo, como os outros cínicos, é caracterizado pela independência (eleuthería), pela suma liberdade de falar (parresía), pela despreocupação e desvinculação do quotidiano (álypon), pela nobreza de alma (gennaîon) e pelo riso (gélos)3. São qualidades a que se permite a entrada no Hades Luciânico. Não pesam, não são um fardo para a memória, não trazem sofrimento pelo que foi perdido, mas provocam um maior distanciamento ou, pelo menos, uma nova forma de atualizar o passado pelo riso e pela liberdade com que se ri.
De qualquer forma, há gritos lá fora na terra. Há festa pela morte dos tiranos, dos avarentos e dos perversos em geral; há luto e lágrimas pelos amigos, pelos parentes amados. Todo morto, não obstante, deixa herdeiros (kleronómoi). E há todo um jogo acerca dessa herança, desse klêros, cuja lógica é invertida e, na acepção mais bakhtiniana do termo, carnavalizada, como, por exemplo, no diálogo entre Terpsíon e Plutão:
[Terpsíon]  E isso, Plutão, é justo? Eu morrer aos trinta anos e o velho do Túcrito, com mais de noventa, continuar vivo?
[Plutão]  Justíssimo sim, Terpsíon. Ele, enquanto está vivo, reza para que nenhum dos amigos morra, enquanto você, ao contrário, durante o tempo inteiro, maquinava contra ele esperando obter a herança (tòn klêron).4
De velhos ricos e sem filhos se aproximavam jovens caçadores de heranças, a fim de, tendo-os servido de “múltiplas” maneiras durante o que seria o final da vida daqueles, serem recompensados e escolhidos como herdeiros no testamento. Quer haja uma referência concreta

ou simplesmente um estatuto tipológico5, o caça-herança tem sua ação subvertida pelo texto, pois ao invés de morrer “o demasiado velho a quem só restam três dentes, que enxerga com dificuldade, se escora em quatro criados, cheio de meleca no nariz e de remela nos olhos e que não sente mais prazer”6, morrem esses “rapazinhos tão lindos e tão vigorosos”7. A economia da obra parece se pautar pela quebra de expectativa, em suscitar um espaço imaginário em que ocorra o contrário daquilo que se espera ou é esperável. Pela subversão “carnavalizante” vem a possibilidade de imaginar um tal espaço; a sua demarcação e instauração ocorre através do ato de rir dos mortos e de si mesmo como morto.
Mas para quem vai a herança? O herdeiro é da família ou da raça helênica?
[Polístrato]  Não, por Zeus! Mas um jovenzinho frígio recém-adquirido, na flor da idade!
[Similo]  De quantos anos aproximadamente, Polístrato?
[Polístrato]  Ah...Uns vinte anos.
[Similo]  Hum! Bem entendo que tipo de “favores”ele lhe prestava!
[Polístrato]  Ele merecia (tá, meu bem!), muito mais que os outros, ser meu herdeiro (kleronomeîn), ainda que fosse bárbaro (bárbaros). Era mesmo uma perdição! Até os meus parentes mais ilustres já estão lhe prodigando cuidados. Pois bem. Ele recebeu minha herança (ekleronómesé mou) e agora pertence ao rol dos bem-nascidos. Usa barba aparada e fala com um sotaque estrangeiro (barbarízon), mas dizem que é mais nobre (eugenésteros) que Codro,mais formoso que Nireu e mais sagaz que Ulisses!.

“De facto, este tipo social [caçadores de heranças] pertence sobretudo ao mundo romano, surge nos últimos tempos da República e prossegue, revitalizado, durante o Império. E se, na produção literária grega preservada, a sua caricatura se limita a Luciano, na latina ele é abundantemente tratado pelos moralistas (Cícero, Paradóxos 39, 43, 46, Sobre os Ofícios 3.74; Sêneca, Sobre os Benefícios 4.20.3), mas principalmente em obras de teor satírico nas suas diversas expressões (Horácio, Sátira 2.5; Marcial 4.56, 6.63, 12.40, 12.90; Juvenal 12.93-130; Petrônio, Satíricon
Parece também haver uma certa subversão no lado de cima. Afinal não é Luciano de Samósata, na posição de estrangeiro helenizado, o herdeiro bárbaro do legado grego? O seu discurso não seria mais nobre do que Codro, mais formoso que Nireu e mais sagaz que Ulisses? A maioria, provavelmente, mais ria de Luciano que o levava a sério. Não obstante, herdando a memória dos gregos, como agirá um bárbaro senão refratar sua posição num espaço discursivo em que todos se sintam estrangeiros em relação a si próprios, em que todos estejam duplamente mortos, tendo perdido o passado e o presente; à vinculação equivocada ao contexto contemporâneo ou aos monumentos tradicionalmente helênicos corresponde o Hades Luciânico, em que o riso cínico recupera a memória, uma recordação sem dor, sem os vínculos que mortificam qualquer um que sofra ou viva de lembranças.
E Homero não sai da cabeça dos gregos. Nem Heródoto e suas histórias. Do aedo que se orienta quase exclusivamente para o passado, não um passado individual nem abstratamente geral, mas para o tempo antigo em que não há cronologia, mas genealogias, cuja temporalidade está incluída em relações de filiação; do aedo que lança uma ponte entre o reino dos vivos e o dos mortos, fazendo o passado aparecer como uma dimensão do além, tornando manifesto o invisível escondido nas profundezas do ser, como na descida de um ser vivo ao Hades (para aprendizagem e busca de informação)9. Do hístor que, menos preocupado em eternizar a glória (kléos) dos heróis, visa impedir que se apaguem os traços da atividade humana; do narrador que publica e mostra sua historíe tendo como função, em comum com a épica, domesticar a morte e socializá-la, mas que se situa num tempo que é dos homens e cuja autoridade, por isso, repousa na própria assinatura; do historiador que é menos testemunha do que árbitro das versões por ele

investigadas, e que não as recusa ou repete, mas adota um outro ponto de partida, o uso da terceira pessoa, o registro da não-pessoa, cujo procedimento lingüístico consegue fazer ver10. De Heródoto e de Homero se utiliza Luciano num jogo de claro-escuro, de alétheia-pseûdos: um e outro, encarnando verdade e mentira, serão atirados no Hades Luciânico e sofrerão um julgamento conforme o modo em que são recebidas suas obras, ou melhor, tendo como critério a absoluta liberdade de mentir, será culpado aquele que, utilizando elementos lendários e fictícios, estiver alojado num campo discursivo marcado sob o signo do verdadeiro e da extrema aversão ao horizonte mítico.
Ainda não tinham decorrido dois ou três dias [de chegada à Ilha dos Bem-aventurados], eu próprio fui à procura do poeta Homero, já que tínhamos ambos tempo livre (proselthòn egò homéroi tôi poietêi, skholês oúses amphoîn). Entre outras coisas me informei (epynthanómen) de onde ele era natural, alegando que sobretudo isso, entre nós, continuava sendo até agora matéria de disputa e polêmica (par’ hemîn eiséti nyn zeteîsthai). Mas ele afirmou não desconhecer que uns o julgavam natural de Quios, outros de Esmirna, muitos de Colofão. No entanto, disse ser babilônio (eînai méntoi ge élegen babylónios), e que entre os seus concidadãos, não se chamava Homero, mas Tigranes; mais tarde, tendo sido aprisionado como refém (homereúsas) dos gregos, é que mudou de nome(...)além do mais, que nem era cego (coisa que se diz a seu respeito) fiquei logo sabendo, pois eu próprio constatei vendo (epistámen heóron gar), sem necessidade de lhe perguntar (epynthanómen) qualquer coisa11.
Enquanto no prólogo, o narrador de Histórias Verídicas remontava sua forma de contar à atividade de Ulisses (que narrava mentindo)12, agora ele se reporta ao encontro com o próprio poeta. Homero é bárbaro. Isso quer dizer que o mais genuinamente grego não é grego, ou seja, Homero é lucianizado e Luciano, conseqüentemente, torna-se um novo Homero. Por um lado, fora da narrativa propriamente dita, Odisseu  que, dentro do poema homérico, conta histórias
9 VERNANT, Jean -Pierre. Mito e Pensamento Entre os Gregos: Estudos de Psicologia Histórica. Trad. de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p.109-113.
10 HARTOG, François. O Espelho de Heródoto: Ensaio sobre a representação do outro. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 16-22.
11 LUCIANO, Histórias Verídicas, II, 20.

fantásticas aos feácios  é colocado como guia para poetas, prosadores e filósofos na arte de mentir, ou seja, um procedimento intrínseco da épica é utilizado indistintamente, mesmo por aqueles que propõem dizer somente verdades. Por outro lado, dentro da história narrada aparece Homero  que, é claro, na épica, está exteriormente falando das façanhas dos heróis dialogando com aquele que não é senão seu herdeiro.
O autor da Odisséia está então no interior de um espaço discursivo caracterizado essencial e positivamente pelo pseûdos, enquanto o personagem Ulisses demarca exteriormente os limites com os outros campos discursivos, em que historiadores, oradores e filósofos, ao ultrapassá-los, passam a mentir e a usar de modo ilegítimo o pseûdos. Não há outra alternativa para os que gostam ou se utilizam da epopéia: ou um Homero consciente de sua ficção ou um dissimulado, astucioso, de mil recursos e ardis, mentiroso e fabulador Odisseu.
Satirizando, ao mesmo tempo, o estilo épico e a escrita historiográfica da época13, o opus luciânico evidencia o ridículo e o absurdo de um tal sincretismo discursivo. Embora os poemas homéricos sejam ridicularizados e, assim, “desentronizados”, embora percam sua seriedade épica e apareçam desnudos de metros e prosificados, eles conseguem uma sobrevida através da escrita luciânica14; ou seja, rindo de ou com Homero, Luciano lhe assegura um lugar de honra na memória sem dor. Rir, com efeito, é um modo de recordar, de inscrevê-lo duplamente no espaço da mnéme, como representante da poesia nobre por excelência e como

os diversos empréstimos à Ilíada e à Odisséia se inscrevem sempre na dialética verdade/mentira que está subentendida em Histórias Verídicas. A aplicação irônica de um “procedimento historiográfico que daria credibilidade”, ridicularizado ao longo de todo o relato, tem certamente por efeito denunciar esta matéria como fabulosa(...)".

princípio fundador de um discurso ficcional. Precisa-se de uma origem, de uma arkhé, assim como é necessário um pai. A história parece ter também ansiosamente necessidade de um. E quantas infâmias e castigos um “Pai da História” não sofreria se fosse, ao mesmo tempo , o “Pai da Mentira”!
(...)entre todos, os que maiores castigos sofriam eram aqueles que, ao longo da vida, tinham sido mentirosos, bem como os que não haviam escrito a verdade (hoi pseusámenoí ti parà tòn bíon kaì hoi mè tà alethê syngegraphótes), entre os quais contavam-se Ctésias de Cnidos, Heródoto e muitos outros. Então, vendo-os (horôn) enchi-me de boas esperanças para o futuro, pois tinha consciência de que nenhuma mentira havia sido dita por mim (oudèn gàr emautôi pseûdos eipónti synepistámen). Então, voltei imediatamente para o navio, pois não conseguia suportar o espetáculo (tèn ópsin)(...)15
Certamente aqui se zomba e se escarnece de um tipo de historiografia fabuladora, assim como de uma literatura de evasão (relatos de viagens a lugares distantes e maravilhosos)16. Mas trata-se também de impor ao discurso historiográfico como um todo certos limites. Colocar Heródoto e seu detrator, Ctésias de Cnidos, no mesmo patamar é problematizar a recepção do historiador. Crer no posterior é descrer no anterior, no sentido de que acreditar em Heródoto é pôr um pouco os relatos de Homero sob descrédito. Fazer crer é fazer ver, e a visão herodotiana já não é crível no contexto do século II d.C., ou seja, a sua prosa é comparável apenas aos discursos sincréticos ridicularizados por Luciano, que misturam procedimentos historiográficos e ficcionais.
Contam, meu querido Filon, que afetou os habitantes de Abdera, durante o reinado de Lisímaco, uma doença (nósema) com os seguintes sintomas: no princípio, com efeito, todos tinham uma febre muito forte logo de início e continuamente alta, e, por volta do sétimo dia, acabava a febre ou com um volumoso corrimento de sangue pelo nariz ou
15 LUCIANO, Histórias Verídicas, II, 31-32.

com uma afluência de suor, também abundante. Mas a afecção deixava-lhes as mentes em um estado ridículo, pois todos se tornavam enlouquecidos por tragédia (es tragoidían parekínoun), declamando iambos e gritando muito. E sobretudo cantavam os solos de Andrômeda de Eurípedes e apresentavam em canção a fala de Perseu; a cidade estava cheia daqueles trágicos de sete dias, todos pálidos e fracos, gritando: “tu, dos deuses tirano e dos homens, ó Amor!” e outras coisas com voz potente, até que o inverno com um frio glacial fez parar aqueles desvairados.”17
Narrando este fato anedótico, Luciano faz uma comparação explícita com a situação atual, em que, sucedendo a guerra contra os bárbaros, o desastre da Armênia e as vitórias contínuas romanas, “(...) não há quem não escreva sobre História (...) e todos se converteram em Heródotos, Tucídides e Xenofontes(...)”18. Ele está se referindo à guerra contra os partos, movida por Marco Aurélio e Lúcio Vero, e da quantidade de historiadores de última hora que surgiram, a fim de, louvando a campanha dos imperadores romanos, captarem sua benevolência e favor. Importa, antes de tudo, verificar a estrutura mnemônica aqui utilizada: primeiro, um fato (uma peste na cidade de Abdera) que remonta ao passado, ao reinado de Lisímaco19 na Trácia. O caráter anedótico faz uma ligação direta com a situação de enunciação, ou seja, o riso atualiza o passado numa ação mnemônica divertida e prazerosa; o passado se torna risível e próximo. Em segundo lugar, evoca as circunstâncias contemporâneas e, fazendo um paralelo entre as duas épocas, torna o atual também risível e anedótico, desvincula-o da dor e o distancia pelo riso.
O presente é o passado do agora: esta a mnemônica luciânica. De um lado, os habitantes de Abdera, recordando em iambos o mito em que Andrômeda (e sua cidade) é salva de um
17 LUCIANO, Como Se Deve Escrever A História, 1. Cf. Eurípedes, Frag. 136.

19 Lugar-tenente de Alexandre que, depois da Batalha de Iso, em 301 a.C., obteve a
monstro marinho por Perseu20, e Lisímaco, preservando a cultura helenística na região da Trácia; de outro, a maioria dos homens de letras de então (nýn toùs polloùs tôn pepaideuménon), escrevendo histórias sobre a guerra, e Marco Aurélio e Lúcio Vero, lutando pela manutenção do Império Romano e da civilização greco-romana. Através do jogo metafórico entre estes quatro termos, Luciano parece desejar um efeito mnemônico, de tal modo que os sucessos ocorridos se tornam atuais e os acontecimentos contemporâneos se transformam num passado risível. Nós somos os outros e o outro, o que já passou, é o nosso presente. Ser estrangeiro, no espaço e no tempo, é a melhor identidade.
Não obstante, aqueles que então se atrevem a escrever estão enlouquecidos frente à realidade dos fatos, escrevem como sob um delírio poético e não conseguem discernir que “a poesia e os poemas têm suas próprias intenções e critérios (hyposkhéseis kaì kanónes ídioi), mas os da história são outros (historías dè álloi)”21. A liberdade da primeira é sem limites e sua única lei é aquilo que pareça ou se apresente ao poeta22. É um grande defeito não saber separar os atributos da história e da poesia, e introduzir naquela os atributos desta: o mito, o elogio e os exageros de ambos. Estão equivocados aqueles que fazem uma divisão dupla da história no que dá prazer e no que é útil, visto que a finalidade e objeto próprio da história é uma única coisa, a utilidade, e a isso se chega unicamente a partir do que é verdadeiro23. Mesmo que seja acompanhada de deleite, isso tampouco deve desviar ou obscurecer o que ela tem como mais específico e determinante objetivo, a publicação da verdade (tèn tês aletheías
20 Cassiopéia, mãe de Andrômeda, tinha se vangloriado da sua beleza e a da sua filha acima dos encantos das Nereidas. Poseidon, pela queixa das Nereidas, envia um monstro marinho, ao qual Cefeu, pai de Andrômeda, tem de sacrificar a filha. O mito encontra-se mais completo nas Metamorfoses de Ovídio [Livros IV e V], já que da tragédia de Eurípedes sobrou apenas um fragmento.
21 LUCIANO, Como Se Deve Escrever A História, 8.

délosin). E um dos primeiros defeitos que a maioria comete é gastar muito tempo elogiando governantes e generais, omitindo o relato dos acontecimentos, pois ignora a grande muralha e a diferença de duas oitavas que separa a história do panegírico24.
Neste sentido, Tucídides estabeleceu muito bem a norma e discerniu a virtude e o erro na escrita histórica (diékrinen aretèn kaì kakían syngraphikén), observando o quão admirado era Heródoto até o ponto de seus livros serem chamados pelos nomes das musas (horôn málista thaumazómenon tòn Heródoton ákhri toû kaì Moúsas klethênai autoû tà biblía)25.
Enquanto em Histórias Verídicas Heródoto era condenado a uma espécie de Tártaro, a uma região de suplícios e castigos, por suas mentiras, aqui ele serve de modelo a Tucídides, o historiador por excelência, que sempre se pautou pela verdade. Mas sua posição ainda é ambígua, pois a referência às Musas parece mais indicar sua ligação e débito ao universo e às intenções da poesia épica. A História de Heródoto se situa entre a legenda dos poemas homéricos e as produções totalmente não poéticas de certos sucessores seus26; ele é, em certo aspecto, um rapsodo em prosa, entre o oral e o escrito, que, acreditando rivalizar com a epopéia, cria um novo memorial bastante diferente da memória épica27. É tanto o “Pai da História” quanto o “Pai da Mentira”28. E parece mesmo receber esse tratamento ambíguo ao longo da obra luciânica.

28 Cf. Ibidem, p. 305, 308: “Livros inteiros foram escritos contra ele. Maneton redigiu um Contra Heródoto, para denunciar suas mentiras sobre o Egito. Os retores, mais tarde, também fizeram sua parte: Sobre os roubos de Heródoto, de Valério Pólio; Sobre as mentiras de Heródoto, por Élio Harpocrátion. Libânio igualmente publicou um Contra Heródoto. Isso sem esquecer o texto mais famoso e o único que recebemos - o tratado de Plutarco Sobre a malignidade de Heródoto.(...) Aristóteles designa Heródoto assim: ho mythólogos [Da Geração Dos Animais, III, 5, 756 b6]. Aulo Gélio, seis séculos mais tarde, falará de homo fabulator [Noites Áticas, III, 10].”

Ele, sem embargo, junto com Tucídides, são tomados, nessa obra, como os referenciais básicos para o futuro historiador. Porém, estando na origem do gênero historiográfico, ele apresenta uma dupla problemática para o opus luciânico. Por um lado, em Como se deve escrever a história, Heródoto, como arquétipo, deve possuir os atributos básicos de um historiador, embora o sumo zelo com a verdade venha, segundo Luciano, antes associado ao nome do ateniense do que ao seu; mesmo assim, na introdução de suas histórias29, fica patente a finalidade de que os acontecimentos grandiosos e admiráveis não sejam apagados pelo tempo30, o que revela sua preocupação com a posteridade, uma questão essencial, como veremos depois, para a manutenção de parâmetros verdadeiros e imparciais. Por outro lado, em Histórias Verídicas, ele é absolutamente ridicularizado, pois, associando em suas narrativas elementos míticos, anedóticos e, por vezes, fantásticos, situa-se numa posição ambígua em relação ao tipo de discurso luciânico, que faz do ficcional em prosa seu traço mais característico.
De qualquer forma, o que importa é excluir da história qualquer elemento que a torne fictícia ou dramática. A princípio, vimos que a contraposição é feita com a poesia, tanto que o primeiro exemplo de um mau historiador é uma espécie de imitador de Homero, que utiliza inapropriadamente recursos e analogias a partir da epopéia31. Mas, em geral, o ônus da censura recai sobre procedimentos retóricos, sobretudo no que diz respeito à oratória epidíctica. Afinal de contas, os historiadores não escrevem como os oradores32, não visam como esses agradar a multidão e a massa do povo33, não se preocupam com o presente imediato nem com interesses
29 Cf. HERÓDOTO, História, Prefácio,1.
30 LUCIANO, Como se deve escrever a História,


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Número 1. Tema: Contestações do Mito. Belo Horizonte: NEAM/UFMG, abril de 2003.
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particulares34, não são prolixos nem aticistas ao extremo35, não criam cenas patéticas como algum escritor e autor de representação (sungraphéa kaì didáskalos toû drámatos)
36, não inventam nem remodelam (epinooûntes dè kaì anapláttontes) os fatos37, não estão voltados para o prazer, mas para o que é útil e correspondente à verdade38. O estatuto do escritor de narrativa historiográfica é forjado a partir de sua antítese com o modo de atuação do orador.
Além disso, o melhor historiador deve vir de sua casa equipado com duas qualidades fundamentais: inteligência política e capacidade de expressão (sýnesín te politikèn kaì dýnamin hermeneutikén)39. A primeira é dom inato da natureza, mas a segunda depende de intenso exercício, da imitação e emulação dos antigos [zélo tôn arkhaíon], ou seja, de toda uma educação em que a retórica40tinha um papel privilegiado. A paidéia é o pressuposto básico para o orador ou para o futuro historiador, mas o tipo de audiência de cada um é radicalmente diferente. Um se apresenta para os ouvintes presentes, uma multidão muitas vezes não educada e sem espírito crítico, para a qual mesmo os fatos históricos podem ser transformados

40 No tratado de Dionísio de Halicarnasso Perì Miméseos, a mímesis é conseguida a partir da emulação dos poetas, filósofos, historiadores e oradores. Enquanto zêlos/emulação diz respeito a uma atividade do espírito voltada para a admiração do que parece belo e, desse modo, não deixa de ser uma capacidade intuitiva e natural em rivalizar com traços considerados admiráveis, a mímesis é uma atividade que pressupõe regras e princípios teóricos, fazendo uma operação de remodelagem dos modelos, a saber, escolhendo as melhores características de cada um dos autores e reestruturando-as numa composição discursiva una e harmônica. Conquanto o trabalho principal e indispensável para quem mimetiza, segundo Dionísio, seja o de rivalizar com os oradores, e isso não seja conseguido sem uma leitura acurada e meticulosa de suas obras, isto é, o mimetizador é um leitor crítico e especializado em discursos retóricos, a atividade do orador é concernente a uma dýnamis (uma faculdade, apoiada sobre a arte, do discurso persuasivo em matéria política, tendo por finalidade o bem falar), que diz sempre respeito a uma atuação pública, uma intervenção política em que se tenta persuadir os ouvintes, quer se fale de oratória judicial, deliberativa ou demonstrativa. Quem pratica a mímesis parece sempre, como num teatro, se transpor a uma situação discursivamente dramática e imaginariamente pública.
SCRIPTA CLASSICA ON-LINE. Literatura, Filosofia e História na Antigüidade.
Número 1. Tema: Contestações do Mito. Belo Horizonte: NEAM/UFMG, abril de 2003.
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recriados segundo o agrado da assistência, ou seja, dos não-leitores no sentido próprio em que temos falado. O outro se dirige àqueles que irão ouvir com mentalidade de juízes e de críticos severos e, com vistas à imparcialidade de suas intenções e objetivos, orientarão seu trabalho sobretudo para os ausentes, para os pósteros, para todos aqueles que são estrangeiros à sua terra e ao seu tempo.
Enquanto um está preso à situação dramaticamente presente, o opus do outro disso se liberta através de uma escrita apátrida e estrangeira, pois mormente voltada à posteridade. O público especializado e crítico, com efeito, está colocado no mesmo nível que esse leitor futuro. Da representação para uma massa popular numerosa, do drâma retórico se distancia e se contrapõe o grâmma escrito desse syngrapheús, desse escritor que pressupõe um leitor especializado de narrativa historiográfica41.
É claro que Luciano também receita (ao futuro historiador) um estilo discursivo apurado, pois, após haver sido tecida uma reserva mnemônica dos fatos (hypómnema ti synyphanéto autôn), agrupados informe e desarticuladamente num corpus, é preciso ordená-los, embelezando-os com os encantos da expressão, das figuras e do ritmo42; feita a introdução do assunto, dando as causas dos acontecimentos, os capítulos devem se seguir fácil e fluidamente e estar coerentemente ligados uns aos outros; é importante ser discreto nas descrições dos lugares, evitando qualquer exibição retórica, além do quê a brevidade é útil em tudo, principalmente quando os temas são abundantes; a potência oratória deve ser canalizada para as partes em que se introduz alguém pronunciando discursos, elogios e censuras, prudentes,
41 Cf. POLÍBIO, XXVI, 1: “O papel do historiador não é tampouco fazer exercícios de eloqüência à custa de seus leitores, nem esmerar-se em ostentações de talento diante deles, e sim descobrir, graças à investigação
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reservados, breves e oportunos, serão acompanhados de provas43. Não obstante, é, por assim dizer, a perspectiva da morte que fornece, de maneira essencial, o horizonte historiográfico, ou seja, apenas como morto o escritor se torna enquanto tal, apenas como estrangeiro a si próprio o historiador enquanto tal se torna absolutamente verdadeiro.
Se é certo que essa exposição luciânica levou a verdade, como princípio fundamental, a uma posição de absoluta alteridade em relação à época contemporânea do autor e, a partir daí, conectou o julgamento mais crítico e ponderado da obra à recepção futura de um leitor especializado, criando assim uma dimensão ‘meta-temporal’ em que a ação do escritor se caracteriza por inserir seu discurso num diálogo de mortos, é também constatável que para certos historiadores, como Dionísio de Halicarnasso, mesmo tomando a alétheia como critério mais básico do syngrapheús, tudo isso é relativizado e matizado segundo parâmetros retóricos e procedimentos estilísticos.
Provavelmente seja sintomático que, na comparação que ele faz entre Tucídides e Heródoto, o primeiro, julgado inferior ao segundo, seja, de certo modo, desclassificado e criticado severamente:
Primeiro e mais importante trabalho para os que escrevem histórias de todo tipo é escolher um argumento belo e que seja agradável a eventuais leitores (toîs gráphousin pásas historías hypóthesin ekléxasthai kalèn kaì kekharisménen toîs anagnosoménois). Isso Heródoto me parece ter feito melhor do que Tucídides...Tucídides, no entanto, descreve uma única guerra (pólemon héna gráphei), e essa nem é bela nem tem um resultado feliz, guerra que jamais devia ter acontecido, ou pelo menos, legada ao silêncio e ao esquecimento, fosse ignorada pelas gerações vindouras44.
mais meticulosa, e relatar-lhes, tudo que tiver sido realmente dito, e mesmo assim reproduzindo somente o que é mais oportuno e pragmático.”

44 Carta a Pompeu, XI, 3, 2-4. Enquanto do Peri Miméseos sobraram apenas alguns fragmentos do primeiro livro e a epítome que oferece um resumo do segundo livro, essa carta a Pompeu reproduz o conteúdo desse livro referente aos historiadores.

No que diz respeito ao tratamento da matéria histórica, Tucídides não teria sabido escolher bem o tema, mais interessado em fazer algo diferente dos outros, nem conseguido delimitar adequadamente o início e o fim da história; por não colocar as devidas pausas, ele fatiga a atenção dos ouvintes e se torna obscuro e difícil de seguir por causa de sua ordenação por invernos e verões, que corta o fio narrativo45. Embora aqui as qualidades estilísticas do ateniense não tenham sido minoradas, no conjunto, ele é considerado bem inferior a Heródoto. Ao contrário desse último, ele não parece querer agradar seus ouvintes, os gregos; comporta-se dura e severamente com sua pátria, dissecando os seus erros e fracassos com muita precisão e reportando pouco e de modo relutante os sucessos dos atenienses; só que essa atitude apátrida, longe de representar uma atitude idônea, seria própria de alguém rancoroso com a cidade que o exilou46.
E não será, ó Dionísio, para pareceres o primeiro e único a inventar inovações paradoxais (parádoxa kaivotomeîn prágmata), que te puseste a censurar acerbamente aquele que figura como modelo de narração histórica (kanóna tês historikês pragmateías), que formulaste este tipo de verdade agradável, subserviente e agradecida a seus ouvintes e compatriotas gregos?
Mas eu não sou o primeiro que empreendeu fazer isso, mas muitos antigos e contemporâneos já têm feito, não por malevolência, mas escolhendo escrever em vista da investigação da verdade (proelómenos graphàs allà theoretikàs tês aletheías); entre muitos exemplos que poderia apresentar, eu me contentarei com dois únicos testemunhos: Platão e Aristóteles47.

Tentando uma aproximação com a verdade especulativa de caráter cognoscitivo da filosofia e com a veraz imparcialidade testemunhal dos historiadores, ele busca, a princípio, patentear critérios verdadeiros e imparciais para julgar as particularidades dos traços de estilo (kharaktéron idióteta)48 dos vários gêneros discursivos.
Nessa obra sobre Tucídides, esse não é acusado, como na carta a Pompeu, de ser parcial e cruel com os atenienses; ele é apresentado essencialmente preocupado com a verdade49e como tendo retirado de seus escritos quaisquer elementos míticos ou fictícios, cuja finalidade seria de enganar e seduzir o público50. Mas isso já não é suficiente para compensar as falhas estilísticas, como a não conveniência dos discursos, a obscuridade e incorreção das expressões. Tanto assim que os imitadores de Tucídides são raros e, em história, não se enumera nenhum51. E, se Demóstenes é visto como tendo tomado certas qualidades dele, evitando, sem dúvida, as falhas, talvez apenas se queira mostrar simplesmente a superioridade do orador sobre o historiador. Uma verdade, preocupada em cotejar os diversos discursos e eleger os mais dignos de emulação, parece sobrepujar aquele tipo de veracidade imparcial e estrangeira; a alétheia de um Tucídides não é suficiente nem agradável o bastante para um historiador que é, ao mesmo tempo, mestre de retórica.
Além disso, Dionísio de Halicarnasso considerava altamente desculpável que os antecessores do ateniense se entregassem a ficções relativas a mitos (tôn mythikôn hépsato plasmáton), com vistas a publicarem as histórias de povos e lugares. Afinal de contas, eles entravam em contato com arquivos de memória (mnêmai) que foram conservados pelos
47 DIONÍSIO DE HALICARNASSO, Tucídides, VII, 3, 3.

autóctones; essa memória era fruto de uma tradição oral, em que os filhos, recebendo dos pais, faziam sua transmissão e condicionavam sua publicação na medida em que reproduzissem por escrito as narrativas, do mesmo modo como tinham recebido dos antigos52. Na verdade, esses antigos prosadores seriam forçados a matizar as histórias locais com episódios míticos, ou seja, eles introduziam fábulas nos seus relatos por respeito às tradições dos povos e das cidades. Isso, portanto, não seria mentir ou falsificar a história, mas simplesmente nuançar a verdade em função de um compromisso ético e étnico com a região sobre a qual escreviam.
Existiram, então, muitos escritores antigos de narrativas e em muitos lugares antes da guerra do Peloponeso, entre os quais estavam:
Eugon de Samos, Dêiocos de Sízico, Bíon de Proconeso, Eudemo de Paros, Dêmocles de Phygela, Hecateu de Mileto, Acusilau de Argos, Caron de Lampsaco, Ameleságoras de Calcedônia; e precedendo de pouco tempo os eventos de Peleponeso até a época de Tucídides, havia Helânico de Lesbos, Damaste de Sigeu, Xenomedes de Ceos, Xantes de Lídia e outros mais53.
Essa necessidade de escrever sobre povos e cidades, iniciada na Jônia em finais do século VI a.C., parece se relacionar com o fato de que aí os gregos estavam sujeitos à soberania de reinos bárbaros, o que suscitou, a partir daí, o surgimento de livros dando todo o gênero de informação geográfica e descritiva dos costumes sociais e religiosos54, promovendo, através do contraste cultural, uma consciência mais viva do próprio passado grego55, uma certa laicização


e racionalização dos dados mitológicos56 e levando à constituição de material arqueológico e genealógico, que foi utilizado como fonte por Heródoto57. Esse último se refere a Hecateu de Mileto como fabricante de narrativas (logopoiós)58,enquanto Tucídides chamará a todos de logógrafos59.
De qualquer forma, para Dionísio, eles são memorialistas exemplares, arquivistas escrupulosos, cuja escrita reproduz fielmente os antigos e primeiros memoriais60. Eles, por levarem ao conhecimento de todos essas tradições-memória exatamente como as receberam, sem nada acrescentar ou tirar61, não deixam de ser verdadeiros por isso; o seu trabalho é honesto e eticamente comprometido, revelando ainda uma certa graça, que faz com que subsistam e continuem sendo agradáveis para certo público62. Manifestando assim sua preferência por uma história de tipo retórico e moral63, ele lhe assinala uma finalidade dupla,

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